Justiça investiga maior operadora de plano de saúde por descumprimento de liminares
19.01.2024 - Fonte: CQCS
Segundo matéria publicada no Estadão, o Grupo Hapvida NotreDame é acusado de descumprir, de forma sistemática, decisões judiciais favoráveis aos beneficiários que, mesmo com as liminares, não conseguem ter acesso ao tratamento de doenças graves, como câncer. De acordo com informações divulgadas pelo jornal, existem pacientes que foram ao óbito após a recusa da companhia em oferecer o tratamento de urgência que havia sido prescrito pelo médico e garantido pela Justiça.
O Estadão fez um levantamento nos processos do Foro Central Cível e encontrou mais de 100 casos de descumprimento nos últimos oito meses. Além disso, o jornal também descobriu que a situação levou à abertura de investigações pelo Ministério Público do Estado de São Paulo (MPE-SP). Em decisões acessadas, os magistrados afirmaram que os descumprimentos por parte da Hapvida NotreDame são rotineiros e que o grupo não demonstra estar preocupado com a Justiça e com as determinações judiciais estabelecidas. Diante disso, os juízes vêm determinando aumento de multas, bloqueio judicial de valores e abertura de inquéritos contra a empresa pelo crime de desobediência, podendo ser punida até com detenção dos diretores.
Questionada pelo jornal, a Hapvida comentou que respeita o Poder Judiciário e negou qualquer descumprimento sistemático das decisões judiciais. A companhia também argumentou que “exerce de forma ampla seu direito de defesa” e declarou que os casos concretos apresentados pelo Estadão já estão em solução.
Apesar de haver registro de descumprimentos pontuais por diversas operadoras, o padrão de comportamento da Hapvida passou a chamar atenção de advogados e juízes no último ano, quando o desrespeito às ordens judiciais se tornou frequente. O índice de descumprimento de liminares por parte do Grupo destoa das demais operadoras, segundo escritórios de advocacia consultados pela equipe do Estadão: 63% a 100% das liminares obtidas em 2023 foram descumpridas. Nos processos contra outros convênios médicos, esse índice ficou em torno de 20% a 30%. Após receber manifestações de juízes e clientes relatando os descumprimentos, a Promotoria do Consumidor declarou que é a primeira vez que recebe tamanho volume de comunicações sobre desrespeito a ordens judiciais por parte de uma operadora.
O aumento dos casos de descumprimento aconteceu depois da fusão das operadoras Hapvida e NotreDame Intermédica, em 2022. Neste período, a companhia enfrentava situação financeira desfavorável bem como pressão dos investidores pela redução de custos e também da sinistralidade.
Além disso, em relação a outros planos de saúde, a operadora também registrou os maiores crescimentos no número de ações judiciais no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) e de reclamações junto à Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) nos últimos anos: as queixas contra a NotreDame na ANS por problemas relacionados à cobertura de tratamentos cresceu 422% entre 2019 e 2023.
O TJ-SP comentou que não é possível levantar o número exato de descumprimentos, mas a apuração feita pela reportagem do Estadão em uma amostra de processos públicos do Foro Central Cível (Fórum João Mendes Jr.) encontrou, ao menos, 126 casos de descumprimento por parte da companhia desde maio. Em julho, foram 10 casos e, em novembro, o número subiu para 28.
Os magistrados diretamente envolvidos nas decisões judiciais não concederam entrevista, pois não podem se manifestar sobre os processos que atuam. No entanto, nos autos analisados, os juízes confirmam que os descumprimentos se tornaram mais corriqueiros e acusam a Hapvida NotreDame de “inércia”, “indiferença”, “desapreço pela vida do paciente” e de ser de “má-fé”. Com isso, caracterizam o comportamento da operadora como “abusivo” e “reprovável”.
“Colegas que atuam nessa área disseram que estão recebendo mais processos da NotreDame e Hapvida e que está tendo muita incidência de descumprimento. Não temos números específicos, mas a gente percebe quando uma situação rara e excepcional vai se tornando reiterada”, disse a desembargadora Maria Lúcia Pizzotti, coordenadora do Núcleo de Mediação (Nupemec) do TJ-SP, órgão à frente de um recém-lançado processo que visa a conciliação entre empresas e clientes dos planos de saúde.
De forma geral, a empresa apenas ignora a decisão do magistrado e não age mesmo após o transcorrido prazo máximo de cumprimento. No entanto, em alguns processos, o grupo entra com recurso, mas, mesmo nesses casos, a lei prevê que ela deveria acatar a liminar por tratar-se uma demanda urgente, o recurso é analisado apenas na discussão do mérito do processo.
Acumulando dois meses, um dos processos de descumprimento determinava a oferta de tratamento para um paciente com câncer na língua. A juíza Ana Laura Correa Rodrigues, do Foro Central Cível, afirmou “que a resistência da NotreDame quanto ao cumprimento das determinações judiciais é evento rotineiro”. Em outro processo do mesmo foro, no qual a operadora se negava a cumprir a determinação de tratamento psiquiátrico, a juíza Luciana Biagio Laquimia disse que a “recalcitrância (desobediência) incondicional da ré já foi observada recentemente em outros processos”.
“Não estão cumprindo mais nada, só cumprem quando o juiz determina o bloqueio judicial do valor ou quando o caso ganha repercussão”, disse o advogado Mário Vechiatto Neto, especializado em direito do consumidor e que já moveu 16 processos contra a NotreDame. “Todos eles tiveram descumprimento ou atraso no cumprimento”, contou.
Um dos casos que foi cumprido parcialmente somente após ampla repercussão na internet foi o da estudante de medicina Maria Paula Sabbion, de 23 anos. Diagnosticada com linfoma de Hodgkin em 2022, ela teve que entrar com um pedido de liminar para que a NotreDame arcasse com as 16 sessões de quimioterapia recomendadas pelo médico. O juiz deferiu o pedido em 1º de novembro para cumprimento em até cinco dias, mas, até o dia 16/11, a empresa ignorou a decisão, o que levou a jovem a publicar um vídeo denunciando a situação em suas redes sociais, como no Instagram e TikTok.
O vídeo teve mais de um milhão de visualizações. No dia seguinte à publicação, a operadora liberou três das 16 sessões necessárias, as quais já foram realizadas. Antes de autorizar as demais sessões, a operadora exigiu que ela passasse por exames. A estudante fez os testes e aguarda autorização da quarta sessão, que está prevista para o dia 24. Em dezembro, a paciente disse ao Estadão que temia a demora para fazer o exame, receber o resultado e abrir outro protocolo solicitando mais medicação. “Isso pode interromper o tratamento por pelo menos dois meses”.
Assim como Maria Paula, a empresária Juliana Martins da Silva, de 45 anos, viveu um drama semelhante. Depois de um ano e meio tratando um mieloma múltiplo, ela deveria começar a tomar diariamente uma medicação de manutenção para que a doença continue em remissão. A NotreDame negou o tratamento, a paciente entrou na Justiça e teve decisão judicial favorável em agosto, mas só recebeu a medicação em outubro e em quantidade que durou somente até o dia 14 de novembro.
“Pensei que, com uma multa (definida pela Justiça), não iriam atrasar a entrega. Já se passaram duas semanas e nada. Para nós, pacientes oncológicos, um mês no atraso do tratamento pode representar a diferença entre a vida e a morte”, disse ela ao Estadão no fim de novembro. Somente após a reportagem contatar a empresa pedindo um posicionamento, no dia 8 de dezembro, o fornecimento do medicamento foi normalizado.
A conduta da empresa também tem sido observada por juízes fora da capital paulista. Em uma ação no Foro de São Bernardo do Campo, a qual a operadora acumulava atraso de quatro meses no cumprimento da decisão que a obrigada a oferecer exame diagnóstico a um paciente com suspeita de câncer, o juiz Mauricio Tini Garcia caracterizou o comportamento da empresa como um “dar de ombros sistemático da ré” às ordens judiciais.
Em outro processo, dessa vez no Foro de Ribeirão Preto, no qual a Hapvida NotreDame se negava a cumprir decisão de realizar uma cirurgia de vesícula de urgência, o magistrado Francisco Camara Marques Pereira destacou que a empresa “vem fazendo ouvidos moucos à decisão da Justiça” e que o descumprimento de decisões judiciais pela companhia “vem se tornando corriqueiro”. Neste caso, a dona de casa Matilde Ramos, de 60 anos, foi à obtido devido a uma infecção generalizada após a operadora resistir por 28 dias em cumprir a ordem judicial.
Quando instigada pelo Estadão, a empresa afirmou que “preza pelo respeito, confiança e deferência às instituições do país, não sendo diferente com o Poder Judiciário”, disse ter, “acima de tudo, compromisso com a vida” e refutou “qualquer alegação de prática deliberada de descumprimento às decisões judiciais”. A companhia também declarou que “exerce de forma ampla seu direito de defesa, dentro dos limites e regras processuais previstas, sempre com a premissa de buscar uma solução mais justa para os litígios”, inclusive com pedidos de perícias, “tendo em vista a legítima preocupação com a sustentabilidade e perenidade da prestação de serviços”.
No entanto, a desembargadora Maria Lúcia Pizzotti, do TJ-SP, esclareceu que a possibilidade da empresa se defender e entrar com recurso não a exime de cumprir a liminar. “Quando o julgador do processo diz ‘cumpra-se’, tem que cumprir e, passado o prazo dado, a empresa já fica em situação de descumprimento. Caber recurso, sempre cabe, mas quase nunca isso dá efeito suspensivo (da liminar). Então, a empresa pode até discutir no tribunal (segunda instância), mas a decisão liminar continua valendo e deve ser cumprida”, explicou a magistrada.
Esta regra é mencionada em decisões judiciais contra a NotreDame. Em um dos despachos, a juíza Ana Laura Correa Rodrigues, do Foro Central Cível, disse que “a mera interposição de agravo (recurso) não autoriza o descumprimento da liminar”, visto que a decisão está mantida e, nos autos, não há “atribuição de efeitos suspensivos” da liminar concedida.
A conduta da operadora é criticada pelos magistrados. “Ressalto que, desde o início do processo, a requerida tem apresentado comportamento extremamente reprovável e em desconformidade com a lisura processual”, comentou a juíza Isabela Canesin Dourado Figueiredo Costa, também do Foro Central Cível, nos autos do processo.
Quando perguntada acerca das manifestações dos magistrados, a Hapvida NotreDame voltou a afirmar que “não há prática deliberada de descumprimento de decisões” e justificou que o setor de saúde suplementar “vem enfrentando uma crescente judicialização”, recurso que “vem sendo utilizado antes mesmo de uma conciliação” pelos canais das operadoras e da ANS e que, em alguns casos, “envolvem fraudes e solicitações de coberturas não contratadas”. “Essa judicialização gera um prejuízo para toda a população, refletindo, por exemplo, em reajustes nos planos de saúde de todos os clientes”, argumentou.
A companhia também declarou que, diante do cenário, é necessária a “atuação responsável e equilibrada para garantir a continuidade da nossa missão, que consiste em dar acesso à saúde para os brasileiros, com valores acessíveis, tendo como premissas a segurança e o cumprimento das normativas” da ANS.
Ainda sobre os descumprimentos, a operadora disse que “embora indesejadas, em algumas situações, acontecem intercorrências na operacionalização do cumprimento das decisões, conforme as peculiaridades de cada caso, muitas vezes em face do prazo concedido e por envolver terceiros”.
A empresa também disse que, após o recebimento da decisão judicial, Matildes Ramos foi atendida com quadro estável em pronto-socorro e internada” e que, “após a realização da cirurgia, a usuária recebeu alta hospitalar”. Segundo documentos juntados ao processo, as informações não conferem. A idosa só recebeu atendimento depois do juiz aumentar a multa por descumprimento duas vezes e porque procurou um pronto-socorro. A cirurgia feita não foi a de remoção da vesícula, mas, sim, a de colocação de um cateter para desobstrução das vias biliares, procedimento que nem sempre resolve o problema.
O crescente número de decisões não cumpridas pela Hapvida NotreDame chegou à Promotoria de Defesa do Consumidor do MPE-SP, que abriu uma investigação preliminar em julho de 2023. De lá para cá, começaram a chegar ofícios também do Poder Judiciário comunicando reiterados descumprimentos.
“De uma forma praticamente inédita, começamos a receber notícias de descumprimento judicial e só da NotreDame. O que é relevante para a Promotoria é investigar as causas desse comportamento. Se a protelação do cumprimento for disseminada, é muito grave”, disse Cesar Ricardo Martins, promotor de Justiça do Consumidor. Com a apuração preliminar, o promotor decidiu instaurar inquérito civil no último dia 12 para investigar as negativas de cobertura e desrespeito às decisões judiciais por parte do grupo empresarial.
Ele conta que, desde julho, quando iniciou a apuração preliminar, solicitou duas vezes esclarecimentos à Hapvida NotreDame, mas afirma que a empresa não respondeu até agora. No documento de instauração do inquérito, o promotor diz que “em breve levantamento de processos judiciais, foi possível verificar que, mesmo nos casos em que há decisão proferindo tutela antecipada (liminar), não há o cumprimento por parte da averiguada”. Entre 80 processos verificados pela Promotoria, nenhum havia tido a decisão cumprida.
O levantamento de casos apresentados ao MPE-SP e que deu origem à investigação foi feito pelo advogado Thiago Gomes de Araújo Silva, filho de uma paciente com câncer da NotreDame que, inconformado com o descumprimento judicial no caso de sua mãe, levantou outros processos no site do TJ-SP: “Falava com outros pacientes e percebi que estavam com o mesmo problema, então, num rápido levantamento, encontrei 80 casos de descumprimento e protocolei uma notícia de fato ao MP. Ele disse ter encontrado dois casos em que as pacientes morreram sem que a decisão tivesse sido cumprida.
Após a conclusão do inquérito, segundo a Promotoria, se ficar comprovado o descumprimento sistemático de decisões judiciais, o promotor poderá propor um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) ou mover uma ação civil pública contra a companhia.
Os casos de descumprimento também foram encaminhados ao MPE-SP para providências no âmbito criminal, dado que o não cumprimento de decisão judicial pode ser classificado como crime de desobediência. A Promotoria do Juizado Especial Criminal (Jecrim) já instaurou 11 inquéritos entre 2022 e 2023 para investigar o crime de desobediência por parte da companhia. A Hapvida NotreDame pode ser punida com multa e até seis meses de detenção para diretores da companhia.
Perguntada sobre as investigações e pela não prestação de informações à Promotoria, a companhia disse inicialmente que “não identificou que tenha sido cientificada, mas adotará as providências necessárias”. Posteriormente, a empresa afirmou que “está diligenciando acesso aos autos para prestar os esclarecimentos necessários”.
Encaminhar o caso para que o MPE-SP investigue crime de desobediência tem sido uma das estratégias tentadas pelos magistrados para coibir os reiterados descumprimentos. Nos autos analisados, o Estadão verificou que eles têm apelado cada vez mais para o aumento do valor da multa por descumprimento e bloqueio judicial do valor do tratamento. Há casos também de aplicação de multa contra a empresa por ato atentatório à dignidade da Justiça e litigância de má-fé.
No entanto, de acordo com os advogados, as medidas nem sempre surtem efeito. As multas são muitas vezes inferiores aos valores dos tratamentos e só precisam ser pagas após o julgamento do mérito da ação, o que faz a empresa “ganhar tempo” caso queira adiar o cumprimento.
Parte considerável das ordens judiciais descumpridas são de pacientes com câncer, mas o Estadão encontrou registros de desrespeito em casos de cirurgias, exames e terapias, como o tratamento de crianças com autismo. A advogada Camilla Varella, sócia do Varella Guimarães Advogados, atende um grande número de pacientes com essa condição e relata que, das 27 liminares obtidas contra a NotreDame em 2023, 17 tiveram descumprimento. “Claramente, no último ano, houve uma piora. A gente entra com pedidos de aumento de multa, de bloqueio e eles fazem de conta que não é com eles. Enquanto isso, essas crianças, que já têm um desenvolvimento atípico, retroagem”, disse a advogada.
Especialista em direito médico, a advogada Larissa Nascimento diz que a operadora tem feito de tudo para dificultar a oferta dos tratamentos. Ela ingressou com uma ação em nome de uma paciente com câncer metastático e teve dificuldades até para notificar a operadora, que não cumpriu a ordem judicial. Ela entrou, então, com pedido de bloqueio do valor do tratamento. Hoje, a cada mês, a advogada pede o desbloqueio parcial em favor da cliente para que ela possa custear o tratamento.
O escritório Vilhena Silva Advogados, especializado em direito à saúde, viu o índice de descumprimentos triplicar por parte das operadoras do grupo no último ano. Das 22 liminares obtidas pelo escritório a favor dos pacientes em 2023, 15 foram descumpridas. No ano passado, haviam sido 18 pedidos de liminares concedidos e apenas quatro descumprimentos. Assim, o índice de desobediência passou de 26% para 68% no período e, segundo o escritório, até liminares de casos de 2022 que estavam sendo respeitadas passaram a ser descumpridas em 2023. “O descumprimento de decisões sempre foi um problema, mas, em 2023, se intensificou”, diz Marcos Patullo, sócio do Vilhena Silva.
Em relação aos casos das pacientes citadas, a operadora informou que “as decisões estão sendo cumpridas e que as pacientes estão com seus casos em solução e “recebendo assistência e acolhimento”.
Sobre a paciente Maria Paula, a empresa alega que não houve descumprimento de liminar. “Após fazer um transplante de medula óssea, foi indicada continuidade de terapia oncológica, que foi autorizada pela operadora”, disse. Procurada de novo pela equipe do jornal, a paciente apresentou os documentos que comprovam o descumprimento. Como já mencionado, a operadora ignorou a ordem judicial por mais de uma semana e as terapias só foram oferecidas após o vídeo da paciente viralizar nas redes sociais.
Em relação à paciente Juliana, a empresa alega que “a medicação solicitada pelo médico de fora da rede está autorizada” e que a demora no fornecimento do medicamento “se deu por conta de uma divergência médica que se encontra solucionada”. A paciente diz que só voltou a receber os remédios no dia 8 de dezembro, após a reportagem do Estadão entrar em contato com a companhia.